“O afeto materno e a segurança que ele traz são suportes muito importantes, tornando-se ponte para alçar novos caminhos. A mãe suficientemente boa permite que o pequeno fantasie um mundo ideal que o fortalece emocionalmente, o alimenta de crenças e o leva a tornar-se um indivíduo apto a se desenvolver. Quando adulto, essas crenças se manifestam de diversas
formas: ideologias, filosofias, religião, esperança, expectativa e perspectivas, inovações, otimismo, valores, princípios. São combustíveis para buscas e superações.”
A “mãe suficientemente boa” tem a sabedoria de apresentar o mundo em doses
“homeopáticas”
Desde a Antiguidade o ser humano pensa em deuses, anjos, santos e criaturas
mitológicas. Antes disto, há 20 mil anos, na Europa, o homem das cavernas
desenhava animais com valor de totens e pintava simbolizações mágicas de caça. A
habilidade em acreditar é traço característico do ser humano e se fortalece no
exercício da imaginação.
Por sua vez, ser capaz de acreditar leva o indivíduo a ser mais forte e bem estruturado
emocionalmente. Todo este conceito foi trabalhado pelo inglês Donald W. Winnicott
(1896-1971), pediatra que chamou de “mundo transicional” essa capacidade imaginativa do homem.
MÃE NÃO PRECISA SER PERFEITA
Winnicott era pediatra, mas teve forte atuação como psicanalista. Ele reconhecia a
carga genética, no entanto também identificava a importância do ambiente na
formação de seus pacientes. De modo simples e com clareza, via o conjunto, e
concluiu que o afeto materno e a segurança que ele traz são suportes muito
importantes, tornando-se ponte para alçar novos caminhos.
Inicia-se nesse ponto o diferencial deste estudioso de sensibilidade ímpar. Para ele, a
mãe que mais vai beneficiar o filho é aquela atenta às necessidades básicas, que
preserva a infância e apresenta os problemas do mundo real aos poucos, conforme o
pequeno tenha estrutura. Nem por isso o pediatra colocou sobre os ombros das mães
uma carga pesada, porque também afirmava que essa mãe não é uma criatura
perfeita, mas uma pessoa normal, com altos e baixos emocionais.
SABEDORIA NATURAL
Winnicott deixou claro que a mãe perfeita não existe. Existe a mãe suficientemente boa (good-enough mothering, em inglês), que mantém sua individualidade e, por vezes, erra tentando acertar. “A mãe suficientemente boa é um colo protetor e facilitador para que o filho enfrente o mundo”, interpreta a psicóloga Maria Leopoldina de Siqueira Leal. Graduada em psicologia clínica, fez mestrado e doutorado pautados na obra de Winnicott.
A mãe suficientemente boa é um colo protetor e facilitador para que o filho enfrente o
mundo.
Um dos aspectos que definem a “mãe suficientemente boa”, explica a psicanalista, é a
sabedoria para apresentar o mundo em doses “homeopáticas”, evitando que os choques de realidade sejam antecipados. Isso quer dizer que ela vai procurar apresentar o mundo, e o outro, no momento em que o pequeno tiver estrutura emocional para isso.
NOVO PAPEL
A mãe com esse perfil orienta, facilita e encaminha sem interferir demais. É coerente
em relação ao que se pode mostrar para cada idade, aceita o fantasiar e permite o crescer. Maria Leopoldina Leal conta que a música preferida do pediatra era Let it be, dos Beatles, traduzido por “deixe estar”. A canção sugere que se deixe o tempo passar porque as coisas se acertam.
Menos preocupação, mais orientação e apoio, atender as necessidades básicas e reais dos filhos, é isso o que deve fazer a mãe suficientemente boa. Sem abrir mão de
sua individualidade, diga-se.
MÃE EXIGENTE
“Winnicott retirou das mães muito do peso que havia em seus ombros, ele alivia a
culpa e abre caminho para que se seja naturalmente boa. Se ela estiver saudável, ela
vai cumprir esse papel que a natureza lhe permitiu, de ser mãe”, diz Leal, cuja tese de
doutorado trata do tema, sob o título Preocupação materna primária, um conceito
winnicottiano.
Winnicott retirou das mães muito do peso que havia em seus ombros, ele alivia a culpa
e abre caminho para que se seja naturalmente boa.
“A mãe suficientemente boa não é rígida, é exigente. Respeita e atende às necessidades do bebê, permite à criança fantasiar, tem laço forte com o filho e aceita seu desenvolvimento, até que ele se desconecte para tornar-se adulto. E depois, voltar para perto, porque o laço jamais será desfeito”, afirma a psicanalista.
DA IMAGINAÇÃO AO DESENVOLVIMENTO
Enquanto protegida do mundo real, a criança pode – e deve –desenvolver seu
pensamento mágico e fantasiar o mundo ideal, exercícios que, para ela, são
espontâneos e naturais. Quanto mais puder trabalhar sua dose de sonho e crença,
mais forte e completo será quando adulto. Quanto mais a criatividade puder fluir, mais
hábil e confiante estará para resolver conflitos.
Lembrando: a mãe suficientemente boa permite que o pequeno fantasie um mundo
ideal que o fortalece emocionalmente, o alimenta de crenças e o leva a tornar-se um
indivíduo apto a se desenvolver. Quando adulto, essas crenças se manifestam de
diversas formas: ideologias, filosofias, religião, esperança, expectativa e perspectivas,
inovações, otimismo, valores, princípios. São combustíveis para buscas e superações.
CAPACIDADE DE CRER
Com esse conceitual teórico consistente, Winnicott define que a característica maior
do ser humano, que até o diferencia dos outros seres vivos, é a capacidade de crer.
“Essa capacidade é a criatividade, ou riqueza imaginativa, inerente à natureza
humana”, afirma a psicanalista. “Ele jamais personificou o ‘acreditar’, no entanto,
retirava as amarras que impediam a crença em algo além da psique”, diz Leopoldina.
Winnicott não fala em alma, mas fala muito em natureza humana. A força que leva
uma pessoa a se reinventar, criar um universo de perspectivas e ideias, reiniciar,
enfim.
O grande ensinamento que Winnicott nos deixa é que todo ser humano tem
capacidade e criatividade para se desenvolver permanentemente.
Sempre há tempo de se fazer um novo curso, realizar um antigo desejo, superar
dores: essa ‘crença’ de que tudo pode melhorar mantém um indivíduo de pé, e acaba
resultando em atitude proativa. “O grande ensinamento que Winnicott nos deixa é que
todo ser humano tem capacidade e criatividade para se desenvolver permanentemente”, afirma a psicanalista. O pediatra morreu aos 75 anos, superando a expectativa de vida da época (1971), e ainda atendia em seu consultório. Leal incita à
reflexão, referindo-se a uma frase de Winnicott: “Oh, deus, fazei com que eu esteja
ainda vivo ao morrer”.
QUEM FOI WINNICOTT
O britânico Donald W. Winnicott formou-se médico na Universidade de Cambridge e
vivenciou as guerras mundiais (1896-1971). Ele apreciava as ideias de Sigmund
Freud, relevantes durante seus atendimentos como pediatra. Não foi escritor como
Freud, não era místico como Carl Gustav Jung, seus conceitos não foram tão
divulgados mas, conforme é estudado, mais e mais ganha reconhecimento.
Pediatra de formação e estudioso das teorias de Sigmund Freud, Donald Winnicott
observou em seu consultório como as relações interpessoais interferem na formação
de uma personalidade. Estabelecidos a partir da observação, seus conceitos são
simples, objetivos e flexíveis.
DIFERENÇAS TEÓRICAS
Enquanto Freud se pautou em uma teoria que resume o desenvolvimento psíquico à
maturidade sexual, Winnicott construiu um corpo teórico consistente expandindo as
possibilidades conforme observava em consultório a elaborada rede formadora de
uma personalidade. Freud buscava adequar o paciente à teoria, Winnicott usava as
teorias para entender a psique. Seus conceitos podem ser subdivididos em temas mas
todos são absolutamente interligados.
Pioneiro em consultas terapêuticas (em que além do paciente entravam mãe, avó,
irmãos), durante o atendimento percebia se um irmão subjugava outro, se a mãe era
amorosa ou rígida, entre outros aspectos da relação vivida por seu paciente. Ele
reconhecia a carga genética mas também a importância do ambiente. Ante a rigidez,
preferia o afeto, este sim curativo e positivo para a formação. Morreu aos 75 anos,
ainda atendendo em consultório.
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